sábado, 29 de agosto de 2009

Palavras para quê

Quando o único amigo é um cão
Quase todos os dias nos cruzamos com animais abandonados, famintos, de olhar triste, que nos seguem na esperança de serem adoptados.

Foi o que me aconteceu, há tempos, em Lisboa, quando ao longo de vários dias fiz o mesmo percurso. Um cachorro saltava à minha volta e, de início, não percebi se pedia festas, comida ou alguém que tomasse conta dele. Ao terceiro dia convenci-me de que se tratava de um cão desprotegido.
Alimentei-o e decidi entregá-lo numa instituição que recolhe animais abandonados. Tinha conhecimento de que era um local onde seria bem cuidado e onde quase todos os dias apareciam pessoas dispostas a adoptar alguns dos que, diariamente, vão sendo recolhidos pela cidade. O cachorro que encontrara na rua facilmente arranjaria dono: era novo, meigo, e aparentava ser saudável.
À entrada da instituição cruzei-me com uma senhora que vira sair de um Mercedes, conduzido por um motorista fardado. Trazia uma cadela Cocker Spaniel presa a uma trela.

Enquanto aguardávamos atendimento os nossos cães cumprimentaram-se e nós trocámos algumas palavras de circunstância. A cara daquela mulher não me era estranha. Depois de algum esforço consegui identificá-la: era um membro do governo.
Quando a funcionária se aproximou justificou o abandono da sua Ritinha: o marido não gostava de cães e ela não tinha vida para a aturar. Os filhos teriam um grande desgosto, mas haviam de recuperar.
Percorri aquele espaço que ainda não conhecia. Cerca de mil cães e centenas de gatos. Muitos deles velhos, cegos, coxos e doentes. A minha aproximação suscitou alguma agitação. Todos pediam festas, todos queriam uma pequena atenção. Evitei fixar os seus olhos tristes.
Foi durante aquela visita que me cruzei com Maria do Rosário. Sentada num recanto, a senhora de oitenta e nove anos, tinha a seu lado um cão de porte médio, castanho, tão velho como ela. Partia bolachas ao meio e metia-lhas na boca. Entre cada bolacha acariciava-lhe a cabeça, passava-lhe a mão trémula pelo dorso e falava com ele.
Fiquei uns minutos a olhar, discretamente, aquela cena ternurenta. Não queria perturbar a intimidade daquele momento, mas aproximei-me.
- O Bobi é o meu único amigo e tive de me separar dele. Vivo num terceiro andar sem elevador e nem as minhas pernas nem as dele aguentavam andar para baixo e para cima sempre que ele precisava de fazer as necessidades. E também já não podia cuidar dele como devia ser. Somos os dois muito velhos e doentes. Não tenho família e quando se chega aos oitenta e nove anos perde-se tudo até os amigos. Venho visitar o meu Bobi todos os Domingos. A cidade está mais calma. É a altura em que todos ou quase todos os passageiros viajam sentados nos transportes públicos. Já não aguento a confusão dos outros dias. Ninguém imagina o que eu e este animal estamos a sofrer, mas não encontrei outra solução para as nossas vidas que estão a chegar ao fim.
Os seus olhos baços, marejados de lágrimas, olhavam-me em jeito de súplica.
Uma voluntária da instituição, minha conhecida, aproximou-se e ofereceu-se para levar Maria do Rosário a casa. Despedi-me à pressa. Não me sentia com coragem de presenciar a separação daqueles amigos.
O olhar de profunda dor de uma mulher velha, solitária e tão abandonada como aqueles animais, foi uma visão horrível da qual não me consigo libertar.
É porque há tantas Marias do Rosário, tantos Bobis e tantos olhos marejados de lágrimas que fui obrigada a partilhar esta vivência que já não cabia no meu coração.

Maria Leonarda Tavares

9 comentários:

Inca disse...

imagino a dor dos dois amigos.bjs

Van Dog disse...

Que historia triste. e bonita ao mesmo tempo. que pena, que pena quem não quer separar-se do seu amigo ter que o fazer.

e desculpem-me, mas que pena não se saber o nome do membro do governo que tão facilmente se separa do seu "amigo".

Eunice Rosado disse...

;( Auff meu amigo.

Emmy disse...

Boa tarde, amigos! Há já algum tempo que não vos visitávamos por isso decidimos vir espreitar. Esta história é muitissimo tocante - triste é a parte da senhora do governo, que devia ter vergonha na cara. Seja aos 10, 20 ou 100 anos, acredito que histórias como esta ainda se repetem e nos dão bons exemplos de amizade e carinho...

Anónimo disse...

Fico triste quando leio este estas coisas mas é a realidade de muitos idosos e animais no nosso país, nos idosos a familia esquece-se q não somos internamente jovens quanto aos os animais ainda a muita falta de cultura de sensibilidade para conm eles, tenho 3 todos recolhidos da rua costumo dizer q só lhe falta falar adoro-os quando um deles faltar vou buscar outro a uma instituição como essa.
É pena ´não dizeres o nome da tal Sª do governo de Sª é q ela não tem nada!!!!!!!!!!!

Beijinhos
Carla

Vanessa Ferreira disse...

Boa noite, é uma historia muito tocante. Pena é haver pessoas que não se tocam.. Enfim não merecem consideração!

Bjinhos para o Spike!

Rute disse...

Olá,espero que te encontres bem.
É uma história triste mas bonita ao mesmo tempo, quanto à outra 1 sra de que falaste infelizmente existem pessoas ainda com essa mentalidade...

Beijinhos

maybe disse...

I'm appreciate your writing skill.Please keep on working hard.^^

Adoro-vos Cães disse...

Sem dúvida, muito comovente!